18 Em Leda (projeto para desenho) , Milton Kurtz (1951- 1996) mostra uma representação contemporânea do mito grego conhecido como Leda e o cisne . Tal narrativa conta que Zeus foi atraído pela beleza da jovem rainha de Esparta e resolveu seduzi-la. Para evitar que ela se as- sustasse com sua aproximação, ele se transformou em um belo cisne. Quando o avistou, Leda foi tomada por grande excitação, entregando-se ao deus dos deuses em seu disfarce zoomórfico. Posteriormente, ela deu à luz dois ovos, dos quais nasceram quatro filhos: Helena de Tróia, Clitemnestra, Castor e Pólux. O relato mitológico inspirou vários artistas ao longo da história da arte, como Leonardo da Vinci (1452-1519), Tintoretto (1518-1594) e Paul Cézanne (1839-1906). To- davia, a proposta de Kurtz se difere e atualiza as imagens mais reproduzidas sobre o mesmo tema. O artista gaú- cho cria uma situação distinta, tanto no que se refere à técnica utilizada – o misto de desenho em grafite com o uso da tinta acrílica – quanto no tratamento e no desta- que da personagem que dá título à obra. Enquanto o corpo de Leda aparece em preto e branco, o restante da composição foi elaborado com a utiliza- ção de chapadas de cores, como o fundo totalmente azul. Além de mostrar o interesse e a maestria de Kurtz em representar corpos humanos, esse contraste contri- bui para destacar a figura feminina. Ainda, forma-se um contraponto entre o manual – a gestualidade do artista evidenciada nos traços, sombras, texturas e volumes do desenho em grafite – e o industrial ou mecânico – suge- rido nas zonas de cores realizadas em tinta acrílica que quase escondem o fazer manual. Essa dualidade possui estreita relação com a formação de Kurtz em Arquitetura e Urbanismo e com a sua atuação como artista gráfico. Na esteira dessa discussão, cabe lembrar que essas ca- LEDA , 1984 | Grafite e acrílica sobre papel | 17,5 x 26,5 cm (projeto para desenho) racterísticas foram bastante exploradas pelos artistas da Pop Art, os quais tinham um fascínio pelas imagens de campanhas publicitárias, do cinema e das histórias em quadrinhos. Claro está, portanto, que os interesses e as produções desses artistas influenciaram o autor de Leda (projeto para desenho) . Dessa forma, nota-se que para representar a rainha es- partana, Kurtz se inspirou em imagens oriundas da mídia de massa, como as divas do cinema clássico e as pin-ups – o que é uma constante na trajetória do artista. Ade- mais, a própria construção da cena se difere de outras representações do mito e acentua o seu viés libidinoso: com o pescoço, o cisne envolve a cintura da personagem feminina e direciona a cabeça e o olhar às suas partes ín- timas. Tais soluções nos mostram uma Leda com o corpo erotizado que, assim como as imagens que lhe serviram de modelo, está destinado ao consumo. De posse disso, parece que o artista pretendeu mostrar algo a mais com esse desenho do que uma simples representação do en- contro entre Leda e o cisne (Zeus). À primeira vista, poderíamos dizer que Kurtz reproduz ou até mesmo acentua a objetificação do corpo femini- no. Todavia, é preciso ir além do ímpeto de uma leitu- ra rápida. Se pensarmos nos detalhes e nas soluções do artista, bem como nas questões que atravessaram seus interesses ao longo de sua trajetória, talvez mudemos nossa percepção e passemos a observar pontos críticos em sua versão contemporânea do mito grego. Ou seja, de forma intencional ou não, o trabalho do artista sugere uma discussão importante e atual: a forma como as mu- lheres foram e são objetificadas tanto na história da arte quanto nas mídias de massa. Diego Hasse

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