20 A produção de um artista serve a quem e a quê? Pri- meiramente serve a ele mesmo, um processo de auto- conhecimento e do mundo que o cerca, reflete sobre o mundo e sobre si. Todo trabalho traz parte do indi- víduo que faz, uma espécie de contínuo autorretrato, se primeiramente serve a si, não se basta por si, visa o outro, é para o outro e não somente para si. Não existe artista sem a dimensão pública, produzimos para nós e para o outro, em um ato de partilha e compartilha- mento existencial e estético, por isso tornamo-nos público aquilo que fazemos primeiramente para nós mesmos, mas que só se completa no outro. A auto referência constante na obra de Milton Kurtz, assim como, nestes desenhos, deflagra a acepção que sempre falamos de uma extensão do próprio artista enquanto ser que impregna cada obra. Neste conjunto específico, vejo a construção de uma identidade que está mergulhada em um ofício, declarado na pranche- ta, no lápis, na pose, na relação entre a reflexão e a ação de desenhar, embebida de devaneios como a figura de ponta cabeça. O desenho aqui funciona como uma espécie de ecografia, torna visível aquilo que não é vi- sível sem a ação do aparelho. E o que não seria visível e passa a ser neste trabalho? Os dilemas de ser artista nos prados verde, amarelo e azul, cujo o aparelho é a vontade do artista materializada em grafite e tinta. Se as cores de dois trabalhos remetem à bandeira nacio- nal, assim a um território e a um espaço cultural espe- cíficos, o terceiro e as figuras aglomeradas bagunçam esta noção de um território delimitado, nos conduzem a uma dimensão mais universalista sobre a reflexão do ato de desenhar, mas antes de tudo o de criar. Entre o controle e odescontrole, o ver, o antever, ao aconte- cimento que é desenhar, o desenhista é vidente e cego ao mesmo tempo enquanto desenha. Se os trabalhos de Mil- ton Kurtz estão embebidos de uma visualidade que dialo- ga com as imagens e técnicas publicitárias de seu tempo, e com a Pop Art, ou seja, trabalhos que estão embasados em projetos, no antever, no prever, a ação de materialização do desenho, o ato de desenhar é sempre uma incógnita, nunca é como o projeto, a mão tem vontade própria, o es- pírito que projetou não é omesmo que executa. Emminha percepção temos aqui um ponto de tensão nos trabalhos, parece uma colagem, parece que a paisagem e a figura se repetem, parece um trabalho serial, parece a mesma coisa, mas não é, nem para nós, nem para o artista. As sutilezas da mão que desenha são irrepetíveis e estão nos detalhes, e isto nos conduz a uma reflexão de ordem existencial: nós que parecemos o mesmos de outrora, sabemos que não somos; a vida, o cotidiano, os encontros soamcomo repeti- ções contínuas em que somos capazes de prever os acon- tecimentos e assim projetarmos o futuro, entretanto a vida é como um desenho, feita de planos e volumes que apesar de antever e projetar, ela é sempre um acontecimento no qual ao viver estamos de olhos vedados, pois ela nunca é como nós prevemos, projetamos, sonhamos, imaginamos. O que parece uma repetição, é sempre único e irrepetível como a mão que desenha. Felipe Caldas SÉRIE PEQUENOS SUSPENSES 6, 7 E 8 (tríptico), 1982 | Grafite e acrílica sobre papel | 66 x 90 cm
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