27 Cinco cores, duas formas, uma superfície lisa. À primeira vista, a ausência de vestígios de pinceladas nos remete às configurações típicas de obras em serigrafia, onde camadas sólidas de cor são sobrepostas uma a uma. No entanto, trata-se de uma pintura e, com essa infor- mação, a aparente simplicidade das formas se converte em um grande rigor técnico. Como pode uma pintura ter contornos tão definidos e cores tão sólidas? Esse tipo de indagação é comum para quem se depara com um trabalho de Milton Kurtz. Ao se apropriar de imagens e símbolos provenientes da cultura de massa, esse trabalho traz em si um exemplo das características que aproximam Milton Kurtz dos mo- vimentos internacionais da Pop Art e Op Art. Sua produ- ção tinha como referenciais o cinema, televisão, revistas, jornais, assim como anúncios publicitários, de onde ob- tinha imagens e padrões. Porém, ao contrário do movi- mento Pop dos Estados Unidos e Inglaterra, Kurtz rejei- tava os meios industriais de fatura, optando por técnicas manuais. No final da década de 80 o artista passou a de- senvolver o que o pesquisador Marcelo Guimarães Alves apresenta em sua dissertação como a fase das silhuetas, na qual, ao sobrepor cores e formas, Kurtz manipula efei- tos óticos em que as imagens se fundem em significados indissociáveis. Datada de 1992, a obra intitulada Concha apresenta poucos elementos, mas uma grande gama de possíveis interpretações. A composição foi feita em três camadas: o verde claro preenche o fundo com cor sólida e chapa- da na imagem, onde duas formas centralizadas se sobre- põem; a primeira é a impressão ampliada de uma digital humana em amarelo, sobre ela uma concha é delineada em azul e preenchida com um tom de verde e amarelo um pouco mais escuros para dar o efeito de transparên- cia no objeto. Na superfície inferior, o orifício da concha é preenchido em um tom mais escuro de azul, que se converte em profundidade para nossa percepção. As três cores utilizadas na composição (azul, amarelo e verde) estão presentes na nossa bandeira nacional e a impressão digital reafirma o tom de identidade/perten- cimento da imagem. A forma que nomeia a pintura e toma protagonismo na composição se destaca por re- meter simultaneamente a um elemento tropical e tu- rístico, sendo encontrado justamente nos litorais que sustentam grande parte da fama brasileira, assim como a um órgão genital. Neste tipo específico de concha há ainda uma interessante comunhão entre o formato va- giforme, presente no orifício entreaberto na parte infe- rior da composição, cujas ondulações se assemelham aos lábios de uma vagina, e o falocêntrico, presente na forma pontiaguda que se ergue na parte superior do objeto. A ambiguidade da imagem é provocativa, onde formas são sugeridas, mas não afirmadas. Os elementos são estáticos e cada pessoa verá aquilo que está dispos- ta a ver. Se a obra pretende questionar os estereótipos do nacionalismo brasileiro, o turismo sexual ou mesmo apenas representar um búzio, isso só o artista poderia responder, porém, suspeito que sua intenção era justa- mente nos tirar do cômodo lugar das certezas. Quase trinta anos depois da criação dessa pintura, o tipo de humor e provocação de Milton Kurtz se faz mais atual e necessário do que nunca. Marina Roncatto CONCHA , 1992 | Pintura, acrílica sobre papel | 70 x 50 cm
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