29 Milton Kurtz foi um dos artistas de sua geração que mais trabalhou temáticas ligadas à sexualidade e ao universo erótico, explorando seu interesse poético pelo corpo e pelas formas de diferentes maneiras em sua produção. Um dos caminhos utilizados dentro de sua pesquisa foi o uso de formas simbólicas que, repletas de dualidade e ambiguidade, fazem referência ao corpo humano e à sensualidade. As imagens construídas por Kurtz possuem, para além das camadas de significado visual e simbólico evidentes, outras camadas de refe- rências subjacentes, mais sutis e provocativas, sendo este, o caso da obra Paus e Concha , de 1992. As duas telas de 150 x 50 que compõem o díptico es- tabelecem uma relação direta de contraste entre si e fazem referência ao universo sexual. Isso se manifesta à medida em que que o artista utiliza símbolos que, sub- jetivamente, remetem ao masculino e ao feminino. Na primeira delas, está representado um tacape de madeira – recorrente no imaginário popular, por se fazer presen- te na carta de número 1 do naipe de paus no baralho espanhol - que surge centralizada na tela sobre o fundo preto. Na composição de Kurtz, a popular imagem do bastão de madeira ganha uma nova dimensão. O uso das cores quentes e vibrantes dão textura e profundida- PAUS E CONCHA (DÍPTICO), 1992 | Pintura, acrílica sobre tela | 150 x 50 cm CADA de ao objeto que parece vivo e pulsante, a ponto de, até mesmo, remeter a um organismo animal; o vermelho in- tenso e profundo como o sangue, predomina na figura; já as ramificações que saem das laterais do objeto, mais parecem artérias vivas do que brotamentos. Ao longo da figura, os nós da madeira - em amarelo, verde e laranja - criam uma textura de formas lânguidas que, discreta- mente, se entrelaçam do topo até a sua base, onde se faz visível, em corte, o interior do objeto amarelo e vibrante. A imagem é instigante. O formato fálico do objeto que tem origem na carta do naipe de Paus, quando represen- tada por Kurtz, ganha um contorno sinuoso com linhas mais curvas e irregulares, mais parecendo ter vindo do reino animal que do vegetal. A segunda tela que compõe a obra, traz uma concha centralizada sobre o fundo branco, ícone do universo afrodisíaco, tradicionalmente associado à sexualidade e ao feminino. Na base da imagem há uma pequena aber- tura sinuosa, que nos revela o interior escuro e profundo da concha. O revestimento externo, por sua vez, é com- posto de uma confluência equilibrada de tons suaves de azul, rosa e roxo, que se combinam em tonalidades de- gradês, formando zonas de luz e sombra no objeto. As tonalidades mais frias sobre o fundo branco criam uma atmosfera oposta àquela manifestada na primeira tela; não obstante, o objeto aqui representado possui tam- bém seus contrastes. A base vagiforme da concha, com orifício de contorno sinuoso e tons rosados, remete ao órgão sexual feminino, entretanto, ao se espiralar gradu- almente, a forma vai se afunilando, ganhando contornos mais duros e lineares, até configurar uma ponta compri- da e rígida. No díptico, a referência simbólica ao órgão sexual mas- culino na tela Pau e ao feminino na Concha criam uma primeira relação de oposição evidente, que é intensifi- cada pela paleta de cores empregada na construção de cada uma das formas. Paralelamente a essa dualidade mais óbvia, cada uma das partes, isoladamente, apre- senta ambiguidades e contradições intrínsecas à própria construção das imagens criadas pelo artista. Kurtz pro- positalmente compõe as formas com elementos dúbios e de significado fluido associados a ambos os gêneros. As formas fálicas e vagiformes estão presentes nos dois objetos em maior ou menor grau e, nessa perspectiva, atribuem certa androgenia às formas, ampliando as possibilidades de interpretação e criando uma relação de proximidade entre as duas telas, para além da opo- sição complementar aparente. Como resultado, temos nessa obra um jogo de contrastes e conexões complexo, no qual as reduções simbólicas são carregadas de pro- vocações e intencionalidades, sempre instigando o es- pectador a explorar suas camadas subjetivas repletas de referências e possibilidades – sendo esta, uma das carac- terísticas marcantes da obra de Milton Kurtz. Nina Sanmartin

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