31 ROCK NEGRO , 1985 | Pintura, grafite e acrílica sobre tela | 150 x 92,5 cm O Bom Fim fervilhava nos anos 1980. Coração da jovem intelectualidade boêmia de Porto Alegre desde a déca- da anterior, o bairro testemunhou um frenesi criativo e comportamental no período, alimentado por uma con- jugação benfazeja de fatores – de circunstâncias nacio- nais do tipo anistia política e relaxamento da censura até episódios pontuais como a abertura de determinados bares e a programação musical de algumas emissoras de rádio. A classe média ilustrada da capital gaúcha abria-se então nos oitenta com avidez para o mundo, buscando com urgência seus traços cosmopolitas – permanente embate local contra o provincianismo atávico –, com olhos e ouvidos atentos para a arte e a cultura produzi- das contemporaneamente nas metrópoles. A música punk, new wave e gótica nos alto-falantes. As aglomerações dentro e na frente do Bar João, Lola, Esca- ler, Lancheria do Parque. Os ciclos de filmes de arte e ci- nema clássico no Bristol. Epicentro dessa agitação mun- dana na Avenida Osvaldo Aranha, o Ocidente era o palco para as performances teatrais do grupo Balaio de Gatos, os shows catárticos da banda Os Replicantes, a premia- ção dos melhores do ano nas artes locais com o Troféu Scalp. Essa cena cultural faminta de modernidade e si- derada de desejo encontrou representação também nas artes visuais: nomes como Telmo Lanes, Mário Röhnelt e Milton Kurtz tiveram destacada participação nesse caldo criador – tanto como intérpretes quanto personagens. A tela Rock Negro (1985), de Milton Kurtz, é testemunho duplo – de uma época e de um artista. O modelo retrata- do é uma imagem típica da juventude que circulava na vida noturna bomfiniana oitentista: fã de bandas britâni- cas de rock como The Clash, The Cure e The Smiths, olhar atento e posição de prontidão, só esperando o Gordo Miranda cantar o refrão “Nega, vamos pra Boston, aqui é sempre a mesma América Latina” para sair pogueando na pista do Oci. Aos pés, três pedras grandes. Elas estão em repouso, não são rolling stones , mas os vapores colo- ridos que parecem emanar delas sugerem vibração, vida, calor – uma sensação reforçada pelo fundo monocromá- tico vermelho lava. Se, do ponto de vista da figuração, o tema central e seus elementos auxiliares insinuam uma energia subjacente que pode explodir a qualquer instante, a fatura caracterís- tica da obra de Kurtz joga igualmente com contradições e atritos em Rock Negro . Em sua leitura particular das operações com que a Pop Art regurgita a comunicação de massa e a sociedade de consumo, o artista coloca lado a lado na mesma obra/discurso o virtuosismo do traço hi- per-realista – no caso de Kurtz, destacando-se uma par- ticular atenção à sensualidade do corpo humano – e a impessoalidade da cor uniforme e chapada, de pincelada sem gestualidade, reforçando o caráter bidimensional da tela e levando o observador a questionar se fundo e orna- mentos foram mesmo pintados a mão ou seriam meras impressões industriais ou colagens. Santa-mariense que morava em Porto Alegre e expunha em São Paulo, Rio e Havana, Milton Kurtz problematizava em seus quadros os dilemas de sua condição, seu tempo, sua circunstân- cia: o artista que trabalha a contrapelo da cultura do descartável, o inovador que enfrenta o convencional, o cidadão do mundo que vive longe demais das capitais. O rock negro pulsa sobre o vermelho sangue. Roger Lerina

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