32 SEM TÍTULO (N1680) | Técnica mista sobre papel cartão, múltiplo | 32,5 x 25,5 e 32,5 x 22,5 cm À primeira mirada, ignoro os dois vincos no tecido da ber- muda que dão a ver a forma arredondada dos músculos do glúteo direito do corpo representado por dez vezes conse- cutivas em formato retrato. Desenhado e colorido por meio de cópia xerox, grafite, lápis de cor e tinta acrílica, a ima- gem se lida como um conjunto total adota formato paisa- gem. A dezena de figuras aparece dividida em duas linhas horizontais de cinco corpos, a anatomia apresenta-se em série. Quando observados de indiscreta proximidade, os trabalhos de Milton Kurtz revelam ao mesmo tempo ma- chas de cor que apesar de manufaturadas aproximam-se do resultado conseguido por meio da impressão industrial. Em cada figura humana, está desprezada sua fisionomia. Estamos falando de umhomemque nunca teve rosto – ele de fato inexiste, como tudo aquilo que está fora do quadro do artista. Visualizamos ao todo dez nádegas, vinte coxas, dez canelas esquerdas, dez mãos direitas e dez peitorais cobertos por camisas regata. Nos diferentes hachurados da estampa estriada, as oito listras de cada peça de roupa remontam, numa livre associação, ao uniforme do mari- nheiro Querelle de Brest. Tal vontade de ignorar os glúteos remontam ao mesmo filme: Each man kills the thing he lo- ves 1 . Quiçá o rosto preterido por Kurtz também. Na disposição 2 dos trabalhos de Kurtz, figuram corpos partidos – corrompidos como nós que carregamos como eles as tintas da paixão, do desejo, da ironia e do misté- rio. Ora grafite, ora impressão, a relação entre as figuras em escala de cinza e seus fundos reorienta a leitura dos corpos representados: os campos de cor apontam de ma- neira insubordinada, porque ilusória, para a subversão da bidimensionalidade – não existem apenas na enfadonha superfície de um papel. São corpos de significações vela- das que reivindicam sua posição no mundo como se fos- sem tridimensionais. 1 Frase de Oscar Wilde em música cantada por Jeanne Moreau no filme de Rainer Werner Fassbinder, “Querelle”. Querelle é um filme de 1982, dirigido por Rainer Werner Fassbinder e baseado na novela “Querelle de Brest”, de Jean Genet, escrita em 1947. 2 O termo aqui é empregado propositadamente como uma alternativa cuir [ queer ] à ideia de composição, oferecendo outra possibilidade que aquela da ordem, do equilíbro e, portanto, da manutenção. Porque tátil, o desejo homoerótico é apresentado em luz, sombra, volumes, textura, perspectivas, colocados em cho- que comcores chapadas, intensas, vivas 3 . O corpo é o espa- ço da intimidade, da promiscuidade, da realização dos de- sejos, mas também é nele que residem os subentendidos. O corpo é também lugar daquilo que não se vê de imediato ou daquilo que não se põe em palavras. Milton Kurtz não se inscreve na história da arte como artista que aposta na observação do modelo vivo, mas na libertina estratégia da apropriação: são corpos produzidos não pela simulação da realidade visível, mas reproduzidos pela mídia de massa, como aparato simbólico construído a partir da fotografia. Nas palavras do próprio Milton Kurtz, “onde existe um cor- po não existe outro”. Mas voltemos aos ignorados vincos, aos sulcos, às entra- nhas e às carnes. Foi Gertrude Stein em Tender Buttons quem melhor versou sobre um rosbife. São palavras sucu- lentas, oportunas para versar como o espectador, ao expe- rimentar a mirada deste múltiplo de Kurtz, é convidado a desvelar a imagem deste corpo cuja textura existe, é real, porque é objeto de desejo do artista. “Sempre que há uso há uso e sempre que há uma superfície há uma superfície, e cada vez que há uma exceção há uma exceção e cada vez que há uma divisão há dividir.  Sempre que há uma super- fície há uma superfície e cada vez que há uma sugestão há uma sugestão e cada vez que há silêncio há silêncio e cada vez que é lânguido então há isso aí e não tão frequen- temente, nem sempre, nem particular, tenro e mudando e externo e central e cercado e singular e simples e o mesmo e a superfície e o círculo e o brilho e o socorro e o branco e omesmo e omelhor e o encarnado e omesmo e o centro e o amarelo e o tenro e o melhor, e tudo junto”. 4 Ulisses Carrilho 3 Ver “Milton Kurtz: Aproximações ao Espírito Pop”, dissertação de mestrado de Marcelo Guimarães Alves (2009). 4 Ver “Rosbife”, em “Tender Buttons”, tradução de A.M.J. Crawford e Miguel Martins. “Tender Buttons” é um livro da escritora americano Gertrude Stein, composto por três seções intituladas “Objetos”, “Comida” e “Salas”.

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